A pintura como teatro<br> jubilatório do mundo
Rogério Ribeiro foi um artista em movimento perpétuo alimentado por um imenso amor à pintura. Atravessou a vida a desenhar e a pintar o que lhe era tão essencial como o bater do coração ou respirar o vento das lutas que vão construindo o homem e animavam a sua mão prodigiosa inventando a realidade de paisagens naturais e humanas que preenchem algumas das páginas mais sublimes da história de arte portuguesa.
Foi homem de projectos, inúmeros projectos em várias frentes de trabalho do mesmo trabalho de transmitir a sua enorme paixão pela arte, produzindo, mostrando, ensinando. A morte essa flor que só se abre uma vez, que quando abre nada se abre com ela, abriu-se no lugar geométrico dos trabalhos que estavam a sair da mesa da imaginação do Rogério Ribeiro para lhe lançar uma sombra definitiva que os oculta dos nossos olhares sempre suspensos pela sua capacidade de nos dar a ver as estórias em que afirmava a certeza de acreditar na arte, no futuro da arte, no futuro da humanidade.
em finais de Janeiro encontrámo-nos na inauguração de uma exposição mudara de atelier pintava uma série de que conhecera os primeiros trabalhos e que tinha sido iniciada em finais do ano anterior estava a fazer estudos para um S. Sebastião que lhe tinham encomendado para uma igreja o S. Sebastião estás a ver aquele suplício de onde se desprende uma sensualidade que quase anula o simbolismo do sacrifício conheces um texto Mishima que incide exactamente sobre a névoa que se instala na fronteira entre o martírio e o prazer e que ele sublinha ao ter a sua primeira experiência sexual aos pés da imagem torturada do S. Sebastião somos perseguidos pelos japoneses ria-se naquele seu jeito muito próprio traz-me esse texto
Seriam telas, tapeçarias, papéis, painéis azulejares ou mesmo simples enunciados que, com grande economia de palavras, rasgavam luminosos horizontes. Coisas ainda em esboço, ainda rascunhadas outras quase definitivas, que iriam completar o imenso legado que o Rogério Ribeiro nos deixou construídas como ele próprio dizia “numa permanente tensão entre a «obrigação» da narrativa e a «traição»» da pintura, a zona mais intensa do amor, do prazer, do gosto pelo puro pintar.
Na sua pintura coexistiam, coexistiram e cruzavam-se sempre esse gozo e prazer de pintar com a livre amarração a uma narrativa que não era um bordão, mas o chão úbere de onde nascia a pintura, o desenho, mesmo quando se iria situar nas fronteiras da mais absoluta abstracção. Essa necessidade narrativa é sempre evidente quer os textos existam, Até Amanhã Camaradas de Manuel Tiago, Liberte de Paul Eluard, nas crónicas de Fernão Lopes sobre a Revolução de 1383-1385 decifradas por António Borges Coelho, Ícaro, do Livro Oitavo das Metamorfoses de Ovídio, Triunfo do Amor Português de Mário Cláudio, O Ano de 1993 de José Saramago, ou sejam escritos por ele e estejam impressos como na exposição Desenhos Recentes (2003-Casa da Cerca), pungente poema a morte não mata a dor ou estejam indiciados nos títulos das exposições, O Atelier, A Paleta, Os Anjos, o Pintor, Um Quadrado Azul, um Potro, Sete Bruxas, Sete medos, Alguns Valentes e um Pintor, Mudam-se os Tempos, Ficam as Vontades ou O Pintor e a Leitura. Textos que convergem com a imagem para delimitar um espaço teórico onde, em todos os desenhos, pinturas, gravuras que completam as séries, se desenvolve uma iconologia em que a pintura e o desenho, sobrevoando o texto que é a sua água subterrânea e a ideologia que é a sua pulsação, se afirmam como um objecto estético que tem uma finalidade em si sem denegar a circunstancialidade temporal, socialmente balizada, do acto criativo.
os japoneses perseguem-nos lembras-te quando em Leipzig entramos na igreja de St. Thomas e estavam a tocar uma Paixão do Bach tocavam esplendorosamente para lá de um qualquer virtuosismo oco como se estivessem possuídos pela mesma fé do Bach era evidente que não tinham ali ficámos a ouvi-los suspensos do lugar e da música deste-me dei-te anos muito mais tarde um cd dessa Paixão a de S.João onde era bem evidente que tocavam muito para lá do brilhantismo tantas vezes superficial de outras interpretações dei-ta para recordarmos esse momento mágico de uma viagem com outros momentos mágicos como aquele em Dresden quando entrámos numa sala do Museu e ficámos paralisados de assombro a ver vários auto retratos do Rembrandt não os sabíamos ali.
Rogério Ribeiro era um extraordinário chefe de equipa sabendo ouvir e estimulando todos os intervenientes com o seu saber, a sua imaginação, a sua capacidade de encontrar soluções, a sua leitura da planificação do tempo para cumprir o objectivo. Na Festa do Avante!, a viajar do Jamor para a Ajuda até se fixar na Atalaia, foi encontrando soluções que resolviam brilhantemente os meios rudimentares em que se ancoravam as mil e uma exigências de um acontecimento impar em dimensão e variedade de valências.
Tal como na memorável exposição que desenhou para o Pavilhão dos Desportos (hoje Carlos Lopes) a comemorar os 60 anos de Luta do PCP e que transformou aquele espaço num extraordinário e inesquecível percurso.
Era um saber que tinha apurado noutros trabalhos. Na coordenação do projecto de remodelação das salas de pintura no Museu de Arte Antiga depois de ter integrado a equipa de Sommer Ribeiro para o Museu Gulbenkian e dirigir o sector de arquitectura de interiores do atelier de Carlos Roxo, Carlos Tojal e Manuel Moreira. Saber que depois de Abril irá transmitir na então Escola Superior de Belas-Artes reestruturando o ensino do Design.
Saber, cultura e capacidade de organização que irá plasmar num seu projecto antigo, muito desejado e que conseguiu realizar em Almada, montando um Centro de Arte Contemporânea, a Casa da Cerca, exemplar tanto no tratamento dos espaços interiores e exteriores como na programação que se impõe sobretudo num tempo em que outros espaços com muitíssimo mais meios se derretem em mediocridades mundanas ao correr das modas que um dia serão varridas pela História.
Saber, cultura, imaginação e capacidade de trabalho transbordante que marcava encontros connosco nas inúmeras exposições individuais e colectivas que realizou, nas tapeçarias e painéis cerâmicos em vários edifícios públicos e em vários lugares do mundo. Que, no meio de tanta actividade, tinha sempre tempo para a intervenção cívica e política e nunca dispensava estar com os amigos.
tínhamos encontro marcado para te levar as Confissões de uma Máscara e para me mostrares o que estavas a fazer pretexto para falarmos falarmos sem norte para no tapete das palavras se acrescentar mais e mais iluminação interior ao prazer de conviver de nos sabermos vivos possuídos de indignações adolescentes com o pantanal em que se afundam os que nos querem lixar sonhos e a vida em que insistimos conhecedores de um mundo futuro que provavelmente nunca viveremos tenho o Mishima fechado à minha frente estou a ouvir a Paixão segundo S.João pelo Bach Collegium do Japão.
em finais de Janeiro encontrámo-nos na inauguração de uma exposição mudara de atelier pintava uma série de que conhecera os primeiros trabalhos e que tinha sido iniciada em finais do ano anterior estava a fazer estudos para um S. Sebastião que lhe tinham encomendado para uma igreja o S. Sebastião estás a ver aquele suplício de onde se desprende uma sensualidade que quase anula o simbolismo do sacrifício conheces um texto Mishima que incide exactamente sobre a névoa que se instala na fronteira entre o martírio e o prazer e que ele sublinha ao ter a sua primeira experiência sexual aos pés da imagem torturada do S. Sebastião somos perseguidos pelos japoneses ria-se naquele seu jeito muito próprio traz-me esse texto
Seriam telas, tapeçarias, papéis, painéis azulejares ou mesmo simples enunciados que, com grande economia de palavras, rasgavam luminosos horizontes. Coisas ainda em esboço, ainda rascunhadas outras quase definitivas, que iriam completar o imenso legado que o Rogério Ribeiro nos deixou construídas como ele próprio dizia “numa permanente tensão entre a «obrigação» da narrativa e a «traição»» da pintura, a zona mais intensa do amor, do prazer, do gosto pelo puro pintar.
Na sua pintura coexistiam, coexistiram e cruzavam-se sempre esse gozo e prazer de pintar com a livre amarração a uma narrativa que não era um bordão, mas o chão úbere de onde nascia a pintura, o desenho, mesmo quando se iria situar nas fronteiras da mais absoluta abstracção. Essa necessidade narrativa é sempre evidente quer os textos existam, Até Amanhã Camaradas de Manuel Tiago, Liberte de Paul Eluard, nas crónicas de Fernão Lopes sobre a Revolução de 1383-1385 decifradas por António Borges Coelho, Ícaro, do Livro Oitavo das Metamorfoses de Ovídio, Triunfo do Amor Português de Mário Cláudio, O Ano de 1993 de José Saramago, ou sejam escritos por ele e estejam impressos como na exposição Desenhos Recentes (2003-Casa da Cerca), pungente poema a morte não mata a dor ou estejam indiciados nos títulos das exposições, O Atelier, A Paleta, Os Anjos, o Pintor, Um Quadrado Azul, um Potro, Sete Bruxas, Sete medos, Alguns Valentes e um Pintor, Mudam-se os Tempos, Ficam as Vontades ou O Pintor e a Leitura. Textos que convergem com a imagem para delimitar um espaço teórico onde, em todos os desenhos, pinturas, gravuras que completam as séries, se desenvolve uma iconologia em que a pintura e o desenho, sobrevoando o texto que é a sua água subterrânea e a ideologia que é a sua pulsação, se afirmam como um objecto estético que tem uma finalidade em si sem denegar a circunstancialidade temporal, socialmente balizada, do acto criativo.
os japoneses perseguem-nos lembras-te quando em Leipzig entramos na igreja de St. Thomas e estavam a tocar uma Paixão do Bach tocavam esplendorosamente para lá de um qualquer virtuosismo oco como se estivessem possuídos pela mesma fé do Bach era evidente que não tinham ali ficámos a ouvi-los suspensos do lugar e da música deste-me dei-te anos muito mais tarde um cd dessa Paixão a de S.João onde era bem evidente que tocavam muito para lá do brilhantismo tantas vezes superficial de outras interpretações dei-ta para recordarmos esse momento mágico de uma viagem com outros momentos mágicos como aquele em Dresden quando entrámos numa sala do Museu e ficámos paralisados de assombro a ver vários auto retratos do Rembrandt não os sabíamos ali.
Rogério Ribeiro era um extraordinário chefe de equipa sabendo ouvir e estimulando todos os intervenientes com o seu saber, a sua imaginação, a sua capacidade de encontrar soluções, a sua leitura da planificação do tempo para cumprir o objectivo. Na Festa do Avante!, a viajar do Jamor para a Ajuda até se fixar na Atalaia, foi encontrando soluções que resolviam brilhantemente os meios rudimentares em que se ancoravam as mil e uma exigências de um acontecimento impar em dimensão e variedade de valências.
Tal como na memorável exposição que desenhou para o Pavilhão dos Desportos (hoje Carlos Lopes) a comemorar os 60 anos de Luta do PCP e que transformou aquele espaço num extraordinário e inesquecível percurso.
Era um saber que tinha apurado noutros trabalhos. Na coordenação do projecto de remodelação das salas de pintura no Museu de Arte Antiga depois de ter integrado a equipa de Sommer Ribeiro para o Museu Gulbenkian e dirigir o sector de arquitectura de interiores do atelier de Carlos Roxo, Carlos Tojal e Manuel Moreira. Saber que depois de Abril irá transmitir na então Escola Superior de Belas-Artes reestruturando o ensino do Design.
Saber, cultura e capacidade de organização que irá plasmar num seu projecto antigo, muito desejado e que conseguiu realizar em Almada, montando um Centro de Arte Contemporânea, a Casa da Cerca, exemplar tanto no tratamento dos espaços interiores e exteriores como na programação que se impõe sobretudo num tempo em que outros espaços com muitíssimo mais meios se derretem em mediocridades mundanas ao correr das modas que um dia serão varridas pela História.
Saber, cultura, imaginação e capacidade de trabalho transbordante que marcava encontros connosco nas inúmeras exposições individuais e colectivas que realizou, nas tapeçarias e painéis cerâmicos em vários edifícios públicos e em vários lugares do mundo. Que, no meio de tanta actividade, tinha sempre tempo para a intervenção cívica e política e nunca dispensava estar com os amigos.
tínhamos encontro marcado para te levar as Confissões de uma Máscara e para me mostrares o que estavas a fazer pretexto para falarmos falarmos sem norte para no tapete das palavras se acrescentar mais e mais iluminação interior ao prazer de conviver de nos sabermos vivos possuídos de indignações adolescentes com o pantanal em que se afundam os que nos querem lixar sonhos e a vida em que insistimos conhecedores de um mundo futuro que provavelmente nunca viveremos tenho o Mishima fechado à minha frente estou a ouvir a Paixão segundo S.João pelo Bach Collegium do Japão.